segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Muros


Fez-se o muro, pedra sobre pedra.
Vem o bafo do tempo. 
O feto verde, rendilhado, de nome avenquinha vê no puzzle rústico a propriedade vertical perfeita para habitar.
Os conchelos aparecem, folhas carnudas, circulares, multiplicam-se como se não houvesse consenso: umbigo-de-vénus, chapéus-de-parede, bacelos ou conchelos? 
Suaves crescem musgos, as hepáticas parecem dedos verdes, espalmados sobre a rudeza do granito rústico.
A saxífraga aparece, espalham-se gerânios silvestres, uma dedaleira deita as folhas verdes ao frio.
A sardanisca é o dragão dos muros que aparece só ao melhor sol do meio-dia. Espalma o corpo, vira-se como um painel solar à luz.
Não era altura de hibernar?
Não estão para aí viradas: lembram crianças travessas que não querem dormir.

Torga ao frio

Vi a torga a quase 2 mil metros, na serra da Estrela.
Não a reconheceria se não houvesse dois botânicos a salientarem o facto.
Rasteiras, vizinhas do cervunal, com receio do vento gélido, deitam pétalas esmaecidas, malgrado o sol brilhante da manhã.
Parecem pessoas.
Se o sítio onde têm raízes não alenta, tendem a perder o brilho no olhar, a deixar cair os ombros, escondidas num buraco perdido.
Se o meio ajuda, riem, trabalham, conseguem pensar mais alto...
Fica a pergunta e o optimismo para a resposta: qualquer que seja o meio, agir é sempre melhor que reagir.

sábado, 9 de outubro de 2010

O Outono vem com a flor da torga

Torga, Calluna vulgaris


Quando o Outono chega já a flor rosa-lilás da urze, também chamada torga - Calluna vulgaris -, cobre as hastes desta planta silvestre em perfeita festa.
Assim que o ar aquece q.b. uma mão-cheia de insectos banqueteia-se no negócio da polinização. São moscas mascaradas de abelhas e de vespas, abelhas e abelhões a sério, como se esta fonte estivesse agendada para que a fuga do frio, mais a norte, não se faça sem sustento.
Neste sincronismo natural, há também borboletas. As mais abundantes são a 2.ª ou 3.ª geração das cinzentinhas, as Leptotes pirithous, da família trintona dos Licenídeos.
Entre grãos de pólen diminutos aos nossos olhos, namoram, dançam, acasalam e aproveitam os pés de tojo, Ulex sp., que ali florescem num contraste amarelo. Da família das ervilheiras, são planta hospedeira, apesar de espinhosa, sem dor para as mariposas que ali até acabam por pôr os seus ovos mínimos, um aqui, outro ali, para que a roda da vida erga novas gerações.
Ao passar perto voa uma majestosa libélula, Aeshna cyanea, grande, em patrulha de predação. A pelo menos centenas de metros do ribeiro, faz questão de voar sem medo perto de mim, o que permite ver as cores vivas entre o verde e o azul-claro, como ocorre com outras espécies. É recíproco, não há nada a temer do "tira-olhos".
E ali anda o padrão de uma savana mostrada na TV. Libélulas e aves feitas leões, sobrevoando a torga, uma área exposta cheia de recursos, onde "herbívoros" catam néctar e tratam da sua vida, no caso moscas, borboletas e abelhas.

sábado, 14 de agosto de 2010

O mundo amarelo do funcho malandro



As flores amarelas em forma de guarda-chuva estão abertas por onde vá. É essa forma que mais denuncia o grupo familiar das Umbelíferas, onde cabem as nossas cenouras, o embude e, entre outras plantas, até a ruda.
Nos baldios das ruas, das estradas, dos caminhos, só quem anda muito distraído é que não vê o funcho vadio em flor.
Esta semana, num justo momento de ócio, deparei com um destes vegetais. Mais alto que eu uns decímetros, com caules atirados na vertical num diâmetro horizontal de um metro, as flores estavam polvilhadas de insectos.
Catafedes vermelhuscos, moscas a parecerem abelhas (foto), uma ou outra abelha a sério, muitas vespas, moscas a simularem vespões, outras tão pequenas que à forte luz do sol nem dava para perceber...
O contraste com a vegetação em volta era notório. Parecia a cidade dos insectos no meio de uma galáxia iluminada, com vasto tráfego, e cada um sem qualquer dúvida sobre o que andava ali a fazer!
Olha se eu fosse sempre assim...
Em baixo, num castanho a puxar o dourado, descansa uma libelinha, claramente uma fêmea do género Orthetrum, se é assim que se escreve. Estará com olho de crocodilo a mirar a caça?
Voltei ao micromundo das flores de guarda-chuva do funcho. Imaginei-me por momentos com um tamanho guardador do talento de voar por entre aquelas formas geométricas, matemáticas, de uma cor limpa, perfeita, pura. Como seria fantástico.
Era difícil de ignorar: num simples pé de funcho malandro, cuja rama não há-de passar naturalmente do Outono, o que não haveria também para cavar das interacções entre espécies que quase não conheço, as suas funções na natureza, os seus papéis, a valiosa troca de animais polinizadores e de planta polinizada, onde a estética se recria sem pintores e escultores, sob o céu azul, a brisa quente e um sol revelador...

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Arbusto das borboletas

Issoria lathonia em budleia

Diz-se que os ingleses chamam arbusto das borboletas às budleias, no seu linguajar.
E é facto que qualquer jardim que se queira engalanar de borboletas, se tiver algumas, não precisa de olhar para outros lados para contemplar uma mão-cheia de espécies.
Depois de saber isto, disse o caseiro quando estive de férias: «Se é adepto das borboletas, basta andar à volta das flores desta planta».
Não disse tudo o que pensei: «Mas olhe que ali em baixo, na berma do caminho, há plantas silvestres que escaparam à «limpeza» que não ficam atrás». Vi que não percebeu...
Referia-me àquelas plantas chamadas com frequência daninhas, não o sendo. Por baixo de uma cerca eléctrica de gado, ao longo de oito metros de comprimento e 30 centímetros de largura, as Mentha, os Echium, os dentes-de-leão e algumas outras ali caídas pela fortuna do tempo, juntavam todos os dias licenídeos cinzentos (L. pirithous, L. boeticus), acobreados (Lycaena phlaeas, L. tityrus), uma das nocturnas com actividade diurna (Macroglossum stellatarum), as Pyronia tithonus, P. cecilia, e até uma das Melitaea, entre outras. As abelhas melíferas, as moscas vestidas de abelhas e vespas também não faltavam, polinizadores importantes no puzzle da vida.
Echium, flor lilás; Mentha, flor branca; L. phaleas
Confesso que aquele miniprado metia as budleias no bolso, embora este ano tivesse visto espécies que não vira antes noutros locais. Ainda assim, nos cardos floridos a caminho da Lagoa Comprida, essas espécies estavam lá em maior abundância, conforme verifiquei.
Não serão por isso as budleias a salvação da fasquia da biodiversidade centrada nas borboletas. São um apoio à falta de espaços naturais conservados, sobretudo para as espécies migradoras, necessitadas de descanso e alimentação.
De regresso ao Porto, vejo inúmeras budleias em flor nos terrenos à volta do estádio do Dragão... sem borboletas. Quem falou há anos de uma Primavera sem andorinhas, nunca terá imaginado que isso poderia acontecer com borboletas...
O défice deverá estar nas plantas hospedeiras - muitas delas ervas da berma dos caminhos, urtigas, pessegueiros, umbelíferas, etc. - cada vez mais escassas por força da gana de esterilização de quem trata os espaços públicos: ele é herbicida, pesticida, fungicida e outros idas, até que nós próprios também imos.
Espargir esses químicos pelos passeios e paredes mata bichos, plantas. Mas não só. Eles vão pelas sarjetas, chegam ao rio, acumulam-se no mar. Entram na cadeia alimentar, ficam na sardinha, crescem na pescada, no linguado, vêm à mesa, e os meninos comem, comem os pais, os avós...
Afinal que interessam as borboletas à conservação e ao bem-estar humano?
Ontem vi este filme: é uma boa síntese.

sábado, 31 de julho de 2010

Uma borboleta das que nunca me tinha sido apresentada

Arethusana arethusa
Nunca pensei vir a encontrar esta espécie tão parecida com uma outra de distribuição bem mais restrita. Esta última, segundo o livro de Maravalhas, «Borboletas de Portugal», apenas se observa em Portugal na zona dos Cântaros, no Parque Natural da Serra da Estrela, e em Montesinho, num sítio junto da fronteira.
Se a Patrícia e o Zé não me ajudassem, ainda hoje andaria na dúvida, se era uma ou outra!
De regresso da Lagoa Comprida desci, ao invés de preferir passar pelo centro de Seia, virando à esquerda pela pequena estrada que desce cheia de estreitas curvas até à Senhora do Desterro.
Nunca tinha passado por ali e quis experimentar.
Passada meia dúzia de minutos, uma das curvas deixou entrever uma formação rochosa, granítica, que lembrava um rosto com nariz voltado para a direita da trajectória da estrada, mas antes de ali chegar vi à minha esquerda, na berma, um agrupamento de cardos em flor pejados de borboletas: melanargias, hesperídeos, alguns pierídeos vulgares, mais ninfalídeos...
Parei o carro, saí e tentei ver melhor o que passava. As borboletas em geral - sobretudo as melanargias - pareciam anestesiadas. Numa tive mesmo de lhe tocar para me certificar de que estava viva: voou pachorrenta.
Por vezes as aranhas ficam nas flores, escondidas pela cor idêntica, e quando um insecto à sua medida passa, basta cravar as quelíceras, aguardar que os químicos façam efeito, e aí vem uma sopa nutritiva à maneira.
No meio disto vejo um satirinídeo (uma subfamília de borboleta) diferente dos que já conhecia, de tamanho médio. Era apenas uma, não mais.
Distinguia-se facilmente das pirónias, das C. dorus, C. pamphilus, ou de outras minhas conhecidas. Era mais arisca e, se lhe desse para isso, num bater de asas desapareceria dali sem apelo nem agravo - num par de anos deixaria de me lembrar dela.
Sem movimentos bruscos registei-a com o pormenor possível, sem a lente macro que nunca tive, sempre de asas fechadas, naquela manhã de 30 de Julho em que passei na serra da Estrela, de férias.
E viva a fotografia instrumental!

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Stress x sementes

S. spini, família: Licenídeos
Um ano de casca extraída, a árvore ainda nem gagueja...



Dia de sol, logo de manhã perto dos 30 graus.
A 10 Km da mata do Desterro, perto de Seia, impunha-se revisitá-la.
Há um ano decorreu uma experiência de controlo de espécies vegetais exóticas, mais concretamente de mimosas, Acacia dealbata.
A experiência consistia em extrair a casca em toda a volta da árvore. Com esse lapso vital, seria de esperar que ficasse decrépita.
Ora, passado um ano, apenas o cocuruto arrepiou. Será sol de pouca dura? Nalguns sítios, o chão parece tão pejado de sementes desta espécie que até parece que a regra geral «stress imposto a uma árvore aumenta a produção de sementes» fica ainda mais evidente.

Anda pelos 500 metros de altitude a mata do Desterro, creio.
Confesso que estava mais filado nas borboletas e num lagarto-de-água que costuma esconder-se num fio de água na beira do caminho. Com tudo rapado, consegui ver um pré-adulto a fugir.

Vi na segunda-feira passada que o esforço de esterilização foi quase perfeito. Esqueceram-se de cortar apenas um pequeno tufo de Mentha sp. e outras que, em flor, ancoraram, para minha fortuna, algumas espécies de licenídeos, inclusive a spini. Do outro lado da moeda ficou uma face cinzenta: não valia a pena voltar lá este Verão.

Estas ideias contumazes de "esterilização" parecem recorrentes por toda a parte, como se a diversidade da vida guardasse horrores. Alimentado o mito das "ervas daninhas", muitas delas tão úteis na orla dos bosques pelo papel ecológico insubstituível que desempenham, a foice altamente produtiva não titubeia.

O corte deveria ter deixado se não corredores pelo menos algumas ilhas intencionais dessas plantas tão importantes para um grande número de insectos.
Vê-los, justificaria um visita diária, com surpresas certas na lista de espécies que iria conseguir ver. Como a solução foi à imagem dos maus episódios da velha história deste pequeno país, há que procurar outros sítios mais vivos, mais selvagens.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Crias de gaivota

Vi ontem três crias de gaivota-de-patas-amarelas, Larus michaellis, na sua versão urbanizada, em cima de um telhado, a cerca de 100 metros da minha janela.
E mais não digo, que tenho pressa de ir uma semana de férias...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Chegou o Verão

A Lua está cheia de luz. Com tanta que até um míope à vista desarmada vê as planícies basálticas, escuras, e as rochas claras, feldspatos dominantes, que reflectem a luz do Sol.
O lusco-fusco está cheio de luz. São 21h25 neste primeiro dia de Verão.
Entre os prédios, alguns quintais pouco cuidados. Numa antiga escola primária, parada há 20 anos desde que o tecto caiu numa sala, há sucessão ecológica no pátio do recreio do meu filho mais velho. As ervas arregimentaram nesgas de solo nas frinchas do chão cimentado. Os melros deixaram sementes em voos ocupados. Os ligustros cresceram, o sabugueiro. Daqui não distingo mais, mas a selva está a crescer. O levantamento de répteis, anfíbios, micromamíferos e artrópodes seria uma experiencia cativante, já que ali houve durante décadas cimento varrido todos os dias, esterilizado à triste maneira urbana.
Voa agora uma gaivota-de-patas-amarelas, adulta. Voo estranho: não tem rota definida, divaga. Avança, para, abre o bico, avança lenta, para, abre o bico… repete.
Súbito já andam vários morcegos em rota rápida. Não são andorinhões. Estes também andam, mais acima dos telhados, os mamíferos andam no vale cavado entre o cimento dos prédios. A asa recortada, escura, não engana.
O turno do dia queima os últimos cartuchos, o da noite, no mesmo nicho, tem pressa, quiçá terá começado agora a cuidar da prole…

quarta-feira, 26 de maio de 2010

As primeiras cinzentinhas

 Leptotes pirithous... à falta de melhor nome, é uma cinzentinha!


Vi a minha primeira cinzentinha há dois dias, meia trôpega, fosse pela eclosão recente fosse pela aragem fria da manhã.

Entre tojo e urze, esvoaçou sobre a terra, arisca, e desapareceu num voo que parecia às cambalhotas.

Desde então não parei de as ver. Inclusive hoje, à hora de almoço, vi duas em aceso namorico, com aqueles bateres de asas vibrantes, pousadas, até que de costas voltadas, pimba, como diria o moço da cantiga do mesmo estilo!

Não me fica bem essa curiosidade, à distância, mas é difícil resistir, embora sempre de maneira a não perturbar os ritmos. Grande mecânica a do ADN que dispara essas pulsões, com feromonas à mistura, para perpetuar o seu sonho de eternidade.

E... cuidado com este ADN! Estamos perante a borboleta da família dos Licenídeos mais fácil de encontrar daqui até ao Outono, em várias gerações, com uma distribuição, pelo menos em Portugal, enorme.


Sem a fímbria dourada das raridades, ou das ameaças de extinção, se a minha memória não vai de patins, as plantas que hospedam a postura desta espécie são as do grupo das ervilheiras e afins, tais como os codessos e giestas.

Nunca vi a lagarta desta espécie, que será certamente pequenita. De quem usa lentes progressivas e para quem as gralhas de imprensa cada vez são mais miméticas,  não há muito a esperar: vê-la só em grande contraste, à lupa, preto no branco...

Feito o somatório, fica na ponta do nariz, para não trocar os olhos, o voo repetido destas cinzentinhas especiais, verdadeiras campeãs da sobrevivência, cujo voejar entrelaça a luz das constelações e o cheirinho das flores silvestres.

sábado, 15 de maio de 2010

Em quinze dias



Eurranthis plummistaria (de Villers, 1789), macho


Há 15 dias, sem contar, vi de manhã muitos indivíduos deste geometrídeo, do grupo das borboletas nocturnas com actividade diurna. Machos, muitos, pelo menos uma fêmea. Tropeçava literalmente neles. Apenas uma Vanessa cardui andava ao vento frio, numa tímida aberta de sol.

Hoje passei com mais tempo nos mesmos sítios, vi só uma a fugir do caminho ante o vento gélido que requer casaco de Inverno por cima da camisola, a mil metros de altitude na serra da Freita.

Será que vem outra geração dentro de dois meses? Ou o metabolismo deste insecto arisco, que não me pousa na mão, arrastará mais um ano, para o próximo Abril, a sua eclosão?

A flor amarela da carqueja domina, mas os sanguinhos-de-água apenas mostram a folha verde. A 40 metros de altitude, não longe do mar, já tiveram folha, flor e até já vi bagas vermelhas esta semana, enquanto a primeira cabra-loura, Lucanus cervus, macho, marcava o ritmo certo num ano atrasado no famoso carvalho-maravilha.

A paisagem é bonita, as Silene acutifolia têm uma cor carmim intensa, ainda há Crocus pelo caminho e as centáureas silvestres estão a aparecer. Mas sem o bater de asa destes insectos que imitam as flores, qualquer montanha fica mais pequena e o horizonte mais acanhado.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

E ontem ouvi-os à janela!

Ontem ouvi-os pela primeira vez.
Só vi dois, ao entardecer, quando o frio baixou os insectos e os andorinhões traçavam elipses multidireccionais no "vale cavado" entre prédios caóticos, também aqui depressões verdes ocupadas por melros, toutinegras-de-barrete, pardais, pombas, gatos e gaivotas-de-patas-amarelas, afastadas do mar.

Tal como hoje. Na luz dourada o que parece preto, afinal é castanho-escuro, penas reluzentes num voo matemático.

Só dois, supõe-se que sejam um casal. Fico curioso: será que dentro de pouco mais de um mês já verei as crias a voarem com eles?

A probabilidade é serem Apus apus. E mesmo sem a coroa do andorinhão-real, Apus melba, são tudo menos banais: a agilidade do voo, o som estridente que agrada paradoxalmente aos ouvidos, parece dizer: Chegámos! Somos mínimos, mas vencemos o deserto do Sara, mais uma vez.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Andorinhões: viajores de longo curso

Hoje, pouco depois das 9h00, tive o prazer de ouvir os meus primeiros andorinhões deste ano.
Ia já na Baixa do Porto, pouco depois das 9h00, e ouvi-os: olhei para o céu, e lá estavam uma meia dúzia, altos, quase a tocarem nas nuvens com vontade de chover.

Cinco minutos antes, ouvi um pintassilgo, aproximei-me da árvore citadina, e era mesmo. Tem ninho por ali, entre a Rua Sá da Bandeira e Gonçalo Cristóvão...

É como se as flores que se sucedem, de plantas nativas e de exóticas, chamassem residentes, pequenos e grandes migraodres.

As vocalizações dos andorinhões, numa vida de velocidade, filhos do ar que quase não tocam terra, não denotam uma fragilidade notória: ai deles se pousam no chão, por acidente ou inexperiência, a envergadura das asas e as patas encurtadas não lhes permitiria alçar voo novamente; só pegando neles e atirando-os ao ar.

Iriam de passagem, mais para norte, estas aves insectívoras. Os que ficarem por aqui, que irei ouvir como todos os anos, talvez em Junho, à janela, com a banda sonora do jantar, ainda poderão estar agora, quando o sol se ausenta, a voar sobre o deserto do Sara...

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Montemuro: Noninha à vista

Geometrídeo, Eurranthis plummistaria

Nunca me tinha sido apresentada. E, naquele plano inclinado da serra de Montemuro, assim que as eólicas com prazer ficaram para trás, comecei por ver uma esvoaçar, prudente e selvagem.

A princípio vi-a tão mal que me parecia uma malhadinha. Não me deu confiança. Mas vi outra idêntica, e já me parecia o padrão de alguma Melitaea, espécies que poucas vezes vi, só nalgumas férias.
Voo baixo entre carqueja, numa brisa a definir-se fria, por fim comecei a ver que, afinal, nada disso, eram machos de algum heterócero, o grupo das chamadas borboletas nocturnas.
Por fim, naquela encosta quase do topo até metade da vertente, terei visto umas 40, e algumas consegui fotografar, se calhar com a ajuda do rebanho de ovelhas e cabras que as terá concentrado, à esquerda do curral da transumância.

Cheguei a casa, não achei que merecesse dúvida. Tive a sorte de acertar com a família à primeira. Era um Geometrídeo de tamanho médio.

Ao fundo, a aldeia de Noninha. Quase uma hora passou até chegar à povoação encaixada em prados verdes, onde  a água se faz princesa e os amieiros lhe fazem vénia, pé no ribeiro.

Imaginei aquelas encostas, agora em triste erosão, cheias de carvalhos, bosques enraizados, geradores de terra fértil, protegidas pela bênção da manta-morta feita de folhas, raízes, fungos, invertebrados e uma teia de vida complexa, rica, que a ciência ainda está a começar a entender. Esponjas vivas que retêm a água da chuva, da neve, e a soltam pelas linhas de água, paulatinamente, ao longo do ano, até ao mar.

Lá em cima, na base das eólicas, o fumo de pequenos fogos, ateados na ideia de fertilizar pastos. Terra exposta ao vento, ao sol, à água que corre a ansiar pela queda livre, quando a terra se perde, a rocha surge, e o deserto começa lá em cima, ganancioso, com vontade de cair sobre o vale.

As grandes civilizações surgiram onde foi grande a biodiversidade. Passada a exaustão, o consumo saturado de recursos naturais, são hoje desertos. Onde era a Mesopotâmia hoje o GPS aponta o Iraque...

Até quando baterão ali as asas, num início da Primavera fria aos mil metros de altitude, estes geometrídeos que, confuso, me pareceram a tenaz malhadinha e depois, noutra aproximação, alguma frágil Melitaea...

quinta-feira, 25 de março de 2010

Uma carriça desinibida



Não sei dizer quantas vezes já vi uma carriça em 48 anos. Foram muitas!

Vi-as pela primeira teria então um metro de altura, nos túneis de giestas por onde me metia nas fantásticas brincadeiras de criança. Ficou-me esta memória, imerso naquele bosque encantado, céu azul coado pela vegetação lá em cima e a quatro palmos do meu nariz uma pequena ave castanha, encantadora, tão perto que parecia ao alcance da minha mão, curiosa, sem se deixar apanhar, fascinante, nesse sonho tranquilo em plena vigília.

Não sabia que era uma carriça, mas ficou a imagem dessa e de outras experiências iguais.

Passados anos, na adolescência, ouvia no jardim da casa em que então vivia, em todas as Primaveras, uma ave que não via, mas escutava, com um trinado fulgurante. Na altura não sabia mas hoje sei que era uma carriça. Ao longo de vários anos fez o seu ninho de taça, nas heras, autêntica artesã, debaixo da escada que dava para cima da garagem.

E hoje de manhã, entre as tantas carriças que entretanto ouvi cantar, todas as Primaveras, vi pela janela uma carriça já habitual na sua ronda. Não sabia que usava calças, mas pendurada numa raiz que salta fora da terra, arqueou por vários segundos as asas enquanto cantava com toda a sua alma e as penas caudais vibravam num ritmo próprio, lento, para um lado e para o outro, como se fosse uma obra-prima a que se dá corda.

Amanhã vê-la-ei de novo, no percurso de rotina que sempre faz, em hora incerta, em busca de aranhas e outros invertebrados que descobre pelas folhas caídas na terra ou na trepadeira que galga a rocha. Sem ser uma ave rara, anda ali, acrobática, mínima, com uma plumagem perfeita, num conluio anunciado com o sol que viaja nas estradas do céu, e que consegue brilhar mais sempre que a carriça solta a territorialidade em forma de canção.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Quando elas se abrem


Nas últimas semanas é difícil não as ver, às bolotas.

Castanhas no Outono, demasiado rijas para dente humano, abrem-se agora, despem a casca, como se ouvissem uma só música, simultaneamente, e algo que virá a ser um tronco forte lança-se com estilo de filamento para fora da arca do tesouro, os cotilédones, se não me engano. Sem acaso, procura a terra e lança débeis raízes.

Muitas destas árvores sem chupeta soçobrarão. Algumas outras, ano a ano, vão passar uma longa vida a tentar tocar no céu. Sentirão o chamamento, num ritmo certo, que as levará a deixar cair as folhas e, a seu tempo, a aragem primaveril provocar-lhes-á o renascimento verde.

Com uma orquestra tão afinada, entre bolotas ou corais, o Homo sapiens que se ponha fino. A continuar assim ainda sai descartado, como um suicida que o não queria ser, mas que tudo fez para descambar.

Sem curar disso, as constelações continuam a flutuar no Espaço, senhoras do universo, mesmo que nem sempre se revelem aos nossos olhos. A gizarem leis que não mudam, tudo regem como os deuses do Olimpo, segundo diziam os gregos muito antes da bancarrota. 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

As ameixeiras vestiram-se para o carnaval



Este ano elas aguentaram-se.
Há quem diga que foi por causa das temperaturas mais baixas, outros pelo sol mais escondido deste Inverno.
O que é certo é que só ontem vi as ameixeiras que ornamentam as ruas em flor. Não tinham só uma, a primeira entre muitas, mas várias, em jeito de enxame ou bando.
Este fim-de-semana teve temperaturas de «ar polar», segundo as notícias, com 9 graus ao meio-dia.
Ainda assim, antecipam-se estas flores claras, brancas-rosadas, nos ramos escuros. Só mais tarde surgirão as folhas, avermelhadas.
Tal oferta aos insectos polinizadores vem como é possível, se bem que um sol e uns grauzitos a mais seriam capazes de dar mais frutos.
Fora isso, é sempre bom vê-las. São outra promessa, em plena cidade, de que dias maiores e mais amenos se aproximam, num cortejo de festa, entre aromas e o cantar de aves que se fazem ouvir como nunca, a que se adicionam muitos outros bateres de asa, acordados pelo brilho longínquo das constelações.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Crucíferas e outras

Violeta-brava


Ontem vi o meu primeiro saramago do ano.
Impossível ficar indiferente, já que nenhum galardão humano lhes faria justiça. Sem prémio Nobel, estas flores silvestres de quatro pétalas dão um sorriso discreto na beira de muitos caminhos, e só quem as olhar de perto lhes leva a beleza na memória.

Vi também, adiante, as primeiras flores de violeta-brava, que noutros anos tenho ideia de ver mais cedo. Pouco altaneiras, salvaguardam-se da ventania, quando passa, enquanto aguardam os insectos polinizadores, semeadores de vida.

Também os primeiros salgueiros abrem flor, no mesmo dia, como se estivessem atrasados. Só mais tarde virão as folhas verdes, não fossem tapar o repasto a aves e invertebrados que levam alimento mas fertilizam a espécie.
Despertam também o ulmeiro e o carvalho-alvarinho, com o prenúncio de rebentos.

Afinal, tudo anuncia a Primavera.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Será que me enganei no calendário?




«Será que me enganei no calendário?».
Esta pergunta poderia estar a ser feita pela borboleta que hoje vi, quando fugia do caminho inundado de sol, à hora de almoço.

A brisa fria não foi generosa ao saudar a eclosão deste animal do Norte, sem passar do Centro, de asas recortadas, poligonais, castanhas que, quando fecha, deixa ver um C branco, numa posição tão estranha que parece ter escorregado numa casca de banana.

É a minha primeira Polygonia do ano! Não fiz foto, ia atrapalhá-la. Castanho-veludo carregado, como é típico da 1.ª geração do ano, desliza no ar em jeito de Ninfalídeo, voo seguro, batida auto-confiante, como se houvesse trilhos bem desenhados no ar que os meus olhos não vislumbram.

A semana passada, a meio, vi um macho de borboleta-limão, Gonepterix rhamni, pela mesma hora, em voo. Esta hiberna como insecto adulto, não será como a Polygonia.

Feito o registo, eu, por cá, fico com aquele bater de asa enregelado, que não perturbei mais, desta lagarta, filha do sol transformada em borboleta, que ao voar parece agitar as constelações escondidas, de cócoras, por trás do azul do céu.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Antes que a luz pare mais acima

Narcissus triandrus


Elas vêm aí e trazem consigo o voo dos polinizadores, antes que as árvores parem o sol nas suas folhas. Primeiro as flores.

Quando começam a aparecer, elas não escondem a memória dos bosques nativos, abundantes de bens e recursos para toda a vida.
Quem ali vivia por mais que caminhasse, nunca os esgotaria. Cada trilho levava a mais bosques e ribeiros. Por isso, a questão de eles poderem um dia acabar nem se colocava. Hoje é o que se vê.

Como as árvores e arbustos de folha caduca do carvalhal começam a reter a luz lá em cima por volta de Abril, esse curto período de Fevereiro e Março - e no Outono com a queda da folha - uma série de pequenas plantas sabia que tinha de florir antes que a luz do sol se fosse. Só as da orla da floresta não precisavam dessa preocupação: o sol aparece ali todo o ano.

As prímulas adiantar-se-ão, assim como as violetas-bravas. De corola amarelada as primeiras e as outras com a cor que levam no nome, partilham o ritmo com outras espécies típicas.

Aparecem depois ranúnculos e, onde os houver, narcisos. O da foto foi em Seia, em Abril de há alguns anos.

As corolas são anúncios dirigidos a quem recebe o salário em forma de pólen e se compromete a levar informação genética a endereço adequado.

A Natureza tem muito bom gosto!

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Meixão: uma vida transparente

Pelo que vi nas notícias, é por esta altura que esse bicho transparente começa a aparecer à molhada junto às praias.

É proibido pescá-los. Mas como a iguaria em Espanha se vende em negócio chorudo... bem, está-se a ver.

Mesmo que a crise não andasse aí a castigar, a transgressão ia rolar na mesma.

Faz sentido a interdição: se estes juvenis de enguia forem dizimados, a capacidade reprodutiva da espécie tremelica.

No puzzle da vida, com maior ou menor intensidade, a ausência de mais esta peça retiraria de certeza recursos à sobrevivência da humanidade.

Depois, este animal tem um ciclo de vida espectacular. Nascem no mar dos Sargaços, não longe da Florida, em pleno oceano Atlântico.

Vai daí, vão crescendo e chegam às praias, procuram os estuários. São transparentes até aqui. À medida que sobem os rios, dando à barbatana agora em água doce (sem açúcar!), vão escurecendo.

A mudança de cor terá a ver com o lodo escuro que atapeta a fase final dos rios e ribeiros? Provavelmente. Mimetismo em acção.

Vão crescendo e vão subindo os rios. Instalam-se, quiçá num açude, discretas as enguias. Crescem durante meia dúzia de anos, até que sentem um clic.

Aí, descem os rios e procuram de novo o mar dos Sargaços, onde, numa orgia santa, se reproduzem e morrem, deixando as fêmeas uma postura para outra geração...

Hoje encontrei uma reportagem a respeito disto no site da RTP...