quinta-feira, 25 de março de 2010

Uma carriça desinibida



Não sei dizer quantas vezes já vi uma carriça em 48 anos. Foram muitas!

Vi-as pela primeira teria então um metro de altura, nos túneis de giestas por onde me metia nas fantásticas brincadeiras de criança. Ficou-me esta memória, imerso naquele bosque encantado, céu azul coado pela vegetação lá em cima e a quatro palmos do meu nariz uma pequena ave castanha, encantadora, tão perto que parecia ao alcance da minha mão, curiosa, sem se deixar apanhar, fascinante, nesse sonho tranquilo em plena vigília.

Não sabia que era uma carriça, mas ficou a imagem dessa e de outras experiências iguais.

Passados anos, na adolescência, ouvia no jardim da casa em que então vivia, em todas as Primaveras, uma ave que não via, mas escutava, com um trinado fulgurante. Na altura não sabia mas hoje sei que era uma carriça. Ao longo de vários anos fez o seu ninho de taça, nas heras, autêntica artesã, debaixo da escada que dava para cima da garagem.

E hoje de manhã, entre as tantas carriças que entretanto ouvi cantar, todas as Primaveras, vi pela janela uma carriça já habitual na sua ronda. Não sabia que usava calças, mas pendurada numa raiz que salta fora da terra, arqueou por vários segundos as asas enquanto cantava com toda a sua alma e as penas caudais vibravam num ritmo próprio, lento, para um lado e para o outro, como se fosse uma obra-prima a que se dá corda.

Amanhã vê-la-ei de novo, no percurso de rotina que sempre faz, em hora incerta, em busca de aranhas e outros invertebrados que descobre pelas folhas caídas na terra ou na trepadeira que galga a rocha. Sem ser uma ave rara, anda ali, acrobática, mínima, com uma plumagem perfeita, num conluio anunciado com o sol que viaja nas estradas do céu, e que consegue brilhar mais sempre que a carriça solta a territorialidade em forma de canção.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Quando elas se abrem


Nas últimas semanas é difícil não as ver, às bolotas.

Castanhas no Outono, demasiado rijas para dente humano, abrem-se agora, despem a casca, como se ouvissem uma só música, simultaneamente, e algo que virá a ser um tronco forte lança-se com estilo de filamento para fora da arca do tesouro, os cotilédones, se não me engano. Sem acaso, procura a terra e lança débeis raízes.

Muitas destas árvores sem chupeta soçobrarão. Algumas outras, ano a ano, vão passar uma longa vida a tentar tocar no céu. Sentirão o chamamento, num ritmo certo, que as levará a deixar cair as folhas e, a seu tempo, a aragem primaveril provocar-lhes-á o renascimento verde.

Com uma orquestra tão afinada, entre bolotas ou corais, o Homo sapiens que se ponha fino. A continuar assim ainda sai descartado, como um suicida que o não queria ser, mas que tudo fez para descambar.

Sem curar disso, as constelações continuam a flutuar no Espaço, senhoras do universo, mesmo que nem sempre se revelem aos nossos olhos. A gizarem leis que não mudam, tudo regem como os deuses do Olimpo, segundo diziam os gregos muito antes da bancarrota.